20080417

Jorge Molder

Álvaro de Campos




O que há em mim é sobretudo cansaço -

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto em alguém,

Essas coisas todas -

Essas e o que falta nelas eternamente -;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada -

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...

E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço,

Íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço...

Álvaro de Campos




Nasceu em Lisboa em 1947. Estudou Filosofia.
Vive e trabalha em Lisboa.



"As várias séries de fotografias que Jorge Molder tem vindo a trabalhar desde meados dos anos setenta vivem em torno de dois vectores essenciais: a duplicidade e a serialidade. A duplicidade advém da encenação dos auto-retratos ou das auto-representações, jogo quase omnipresente em torno de alguém que nos olha como se fosse um duplo do artista, um seu fantasma. Já a serialidade provém de duas características, em que uma delas é operativa e a outra é cognitiva. Por um lado, fotografar é funcionalmente um acto de reproduzir, é um dispositivo reprodutivo - de pessoas, coisas, ambientes, situações. Todavia, esse dispositivo reprodutivo como que suspende o tempo, como que fixa o instante. E, fixando o instante, reflecte-o, torna-o reflexo, isto é, capaz de ser reenviado outra vez. Mas, por outro lado, a serialidade, para usar as palavras de Walter Benjamin, traduz a perda da aura."




"Ora, as séries de Molder são o lugar dessa memória involuntária. Só que, na sua serialidade íntima, asfixiam qualquer possibilidade narrativa, deixando em suspenso as sensações, as figuras, os sintomas que essas figuras implicam. Os sintomas, sabemo-lo desde Freud, são o regresso do recalcado: o duplo de si mesmo, a reprodução do mesmo. Que só as sensações, imbricadas no claro-escuro, na luz e na sombra, conseguem trazer à superfície do espelho (que, até, pode ser água petrificada em gelo, como acontece numa das séries) por um instante, o instante absoluto do jogo, da prestidigitação, da colecção."




"Será esse instante absoluto um outro nome para um determinado cadavre-exquis, tão ao gosto dos surrealistas, e que cada série consagraria? É possível, apesar do cadavre-exquis ser uma narrativa do inconsciente, típica das associações livres, mas também um outro nome para o acaso, para o jogo, para a prestidigitação, todos passíveis de colecção. Como acontece com as séries de Molder (o ás, o dado, os punhos ou o colarinho imaculadamente brancos, as caixas enquanto guardiães do tempo), onde a metamorfose e o castelo (de cartas, de arbítrio), evocadores de Kafka, surgem inequivocamente. A metamorfose evoca o instante da passagem de algo ao seu estranho (uma desterritorialização, para usar o conceito de Deleuze e de Guattari, donde o lugar de um discurso não-institucional) só que, aqui, à sombra de um passado tutelar (quem domina o castelo é, afinal, o duplo) onde as imagens têm ainda o peso da aura."



"É, pois, esta tensão entre presente e passado que possibilita a não-narratividade das séries de Jorge Molder. É, ainda, este jogo de des-significação das imagens que o duplo potencia. Só que, por detrás dele, no instante absoluto, um outro olho espreita - mais predador em relação ao duplo do que em relação a si próprio. Afinal, a estética romântica passou por aqui. Tal como, consequentemente, passa por aqui a não resolução do plano da transcendência e do plano da imanência, melhor, uma resolução que Molder quer que esteja em suspenso. Entre um e o outro, o instante - o absoluto."

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